

Sabemos realmente do que gostamos de comer?
Contrariando expectativas, percebemos que a nossa preferência não se inclinava de forma unânime ao que é supostamente natural
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Perplexa. Não encontro outra palavra que capte melhor a essência do que senti ao experienciar esse momento. Foi, sem sombra de dúvida, um marco transformador e o caminho pelo qual a vida e as minhas escolhas me trouxeram até aqui. Esta história se tornou meu clichê, que eu gosto de contar para me lembrar, mas também para dar de bandeja aos leitores a resposta do porquê eu insisto me dedicar aos estudos do gosto alimentar.
Era uma tarde de outono típica sa, daquelas cheias de poesia. Eu estava a caminho de um evento do IEHCA, um instituto europeu de pesquisas sobre história e cultura da alimentação sediado na cidade de Tours, na França. O tema? Comida feita em casa – fait à la maison, como dizem. A recepção desse evento aconteceu no salão principal de um imponente prédio da prefeitura da cidade. Lugar suntuoso. Chegamos lá e havia um almoço para nos receber. Mas não era qualquer almoço. Havia diversas preparações espalhadas em rechauds pelo salão. A parte inusitada era: para cada tipo de preparo, havia duas amostras – uma “feita em casa” e outra industrializada. E tinha mais: não era dito aos comensais qual era qual, e você recebia um papel para anotar suas impressões e apostas.
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Eu estava ali com meus colegas de mestrado. Cada um de uma parte do mundo. Tinha vietnamita, taiwanês, venezuelano. De tudo, um pouco. Um dos meus colegas era cozinheiro de um renomado restaurante três estrelas Michelin, na França. Colei nele. Pensei, esse vai acertar “na mosca”.
Foi uma tarde divertida, repleta de tiros certeiros: essa lasanha é industrializada, com certeza! Ao final, veio o tão aguardado momento: revelar o que havíamos provado naquela tarde. Para a surpresa geral da nação, quase todos haviam errado grosseiramente. amos longe. Saí de lá inquieta. Como pode não sabermos, pelo gosto, o que estamos comendo? Os meus pares eram todos da área de gastronomia, estávamos há anos mergulhados no mundo da alimentação.
O evento seguiu apontando que a comida “feita em casa” era o grande valor que estávamos atribuindo aos alimentos. Mas alguma coisa não se encaixava bem em meus pensamentos: valorizamos comida “feita em casa”, mas não sabemos reconhecê-la às cegas?
Aposto que você, leitor, pode estar pensando: ah, mas eu saberia! Era o que eu pensava. Este experimento revelou, com uma clareza surpreendente, que o paladar, esse sentido tantas vezes elevado a juiz supremo do bom gosto, pode ser enganosamente impreciso. Contrariando expectativas, percebemos que a nossa preferência não se inclinava de forma unânime ao que é supostamente natural, ao fait à la maison. Esse almoço desenhado para confrontar, sem aviso prévio, o gosto das preparações “feitas em casa” com a precisão industrial dos alimentos processados, uma proposta engenhosamente simples, mudou a rota das minhas compreensões sobre gosto e alimentação. A maneira como expressamos nosso gosto alimentar, nesse contexto, não é mero detalhe, mas, sim, peça fundamental na construção de nossa identidade coletiva.
Esta primeira coluna é um convite a todos, os que gostam ou não de comida “feita em casa”, a refletir, não apenas sobre o que consideramos “bom” para comer, mas sobre como esse julgamento se entrelaça com as narrativas que compõem nossa alimentação. Afinal, a comida que a gente gosta pode se revelar em lugares improváveis, por vezes, inimagináveis.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.